Espiritualidade cristã em tempo de isolamento, pelo cardeal Tolentino
Uma espiritualidade em
tempos de pandemia, o que é, ou melhor, o que pode ser?
Porque, no fundo, estamos no
improviso. É interessante que, muitas vezes, na coreografia, na dança, se usa o
improviso; não gostamos muito, porque preferimos uma vida conduzida por um
guião; um improviso faz-nos viver o aberto; e para começar a falar do que é a
espiritualidade em tempos de isolamento provocado pela pandemia, tenho de dizer
isto: o futuro chegou de supetão, o futuro chegou achando-nos impreparados.
Nenhum de nós sabe como lidar com esta situação. Sentimo-nos, todos, mais
vulneráveis, mais precários.
À primeira vista, dizemos:
aquilo que nos aconteceu é uma distopia; é uma calamidade; é o contrário da
graça. E, contudo, em termos de fé, temos de olhar para este cronos, que parece
devorar a nossa força e a nossa esperança, como a possibilidade de um káiros, a
possibilidade de uma graça.
Este é um tempo de kénosis,
de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo em que, talvez, sintamos uma
incerteza muito grande, um tempo de crise, um tempo em que parece que a vida
vem menos. Um tempo precário.
Mas eu lembraria que a mesma
raiz etimológica aproxima as duas palavras: precare, rezar, em latim, e
precarium, o destino daquilo que é frágil. A espiritualidade não se constrói
com a força. Jesus ensinou-nos isso com o mistério da sua Páscoa. Porque tudo tem
de passar pelo mistério da cruz. E, por isso, este tempo, que parece só de
calamidade, temos de o interpretar de um ponto de vista teológico e espiritual
como um tempo de graça.
A pandemia descobriu,
revelou, uma doença, que são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde já não
há alugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o
transcendente, não há lugar para uma vida interior rica, digna desse nome, não
há lugar para uma oração
Como é que este pode ser um
tempo de graça? Na oração que o papa organizou, na praça de S. Pedro,
sexta-feira [27 de março de 2020], que muito nos impactou, ele escolheu ler o
texto do Evangelho da tempestade acalmada. E no meio da tempestade, os
discípulos perguntam a Jesus: Senhor, não te importas que morramos? É uma
pergunta. E este é o tempo das perguntas, e das perguntas fundamentais.
Se eu tivesse de sublinhar
um ponto muito positivo desta experiência exigente que estamos a viver, é a
qualidade das perguntas que escutamos.
É como se vencêssemos a banalidade,
e as perguntas que ouvimos fazer uns aos outros são muito mais intensas, muito
mais carregadas de sentido.
É curioso que aqui, em
Itália, no início da pandemia, abriram-se gabinetes de apoio psicológico. E
muitos idosos telefonavam, dizendo isto: eu não consigo rezar. E, de facto,
este começou por ser um tempo em que parece que não era possível uma vida
espiritual. Depois, descobrimos o contrário: que este tempo é de uma grande
intensidade espiritual. E qual é o termômetro para perceber isso? São as
perguntas, a radicalidade, a força das perguntas fundamentais que estamos a
fazer.
Pegando no discurso do papa,
há que dizer a verdade: não é a pandemia que nos adoeceu; nós já estávamos
doentes. A pandemia descobriu, revelou, uma doença, que são, no fundo, os
nossos estilos de vida, onde já não há alugar para o humano, não há lugar para
o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida
interior rica, digna desse nome, não há lugar para uma oração. Tudo é
cronometrado, tudo passa pelo taxímetro.
Tenho um casal amigo - e é
muito belo ouvir as histórias que se passaram nas famílias, porque, de certa
forma, uma das coisas que este isolamento trouxe, é a redescoberta da família.
Pelas primeira vez muitos casais, muitas famílias, passaram juntas um tempo de
qualidade como não passavam há muitos anos, ou como nunca tinham passado – no
qual um menino de cinco anos, à mesa, disse isto: eu acho que percebo o que
estamos aqui a fazer; estamos aqui a criar memórias. Por vezes as crianças são
antenas que nos ajudam a perceber o que estamos a fazer.
Não podemos olhar para este
momento apenas como um parêntesis, como uma suspensão, e depois vamos voltar a
viver tudo o que vivíamos – isso não é ajustado à realidade. Temos de encontrar
novas linguagens; este tempo é um laboratório. E temos de ouvir o futuro, que
já está aqui, porque, como diz Santo Agostinho, há um presente do futuro
Este é um tempo de graça, é
um tempo para a graça, é um tempo de maior gratuidade, e é um tempo para criar.
Não é só um tempo para “descriar”; não é só a passividade, não é só o não
fazer; é um tempo propício, oportuno. Por isso, há aqui um chamamento a modelar
o tempo do ponto de vista da fé.
Um dos princípios que o papa
Francisco repete muitas vezes é: o tempo é superior ao espaço. Parece uma
sentença muito filosófica, e que não tem uma leitura fácil, imediata. Contudo,
neste tempo de isolamento social, percebemos isso: o tempo é superior ao
espaço. Aconteceu uma espécie de recuo.
A mística judaica fala numa
espécie de “tzimtzum”, parece uma coisa brincada. O “tzimtzum” é uma coisa
inventada a partir das leituras da Cabala, segundo a qual Deus, para poder
criar, teve de dar um passo atrás, teve de se despojar de si mesmo para poder
criar. Esta ideia foi retomada por autores tão importantes na segunda guerra
mundial como Simone Weil, que disseram, precisamente: o tempo da catástrofe
parece um tempo em que Deus recua, dá um passo atrás; contudo, é um tempo para
descobrirmos o Deus da ternura, o Deus da misericórdia, o Deus próximo, o Deus
comprometido com a pessoa humana, o Deus que está ao lado da vítima, ao lado do
que sofre; porque o próprio Deus vive este recuo.
É uma ideia curiosa, que nos
deixa a mística judaica, e que nos ajuda a pensar o que está a acontecer com o
espaço; está a acontecer o nosso “tzimtzum”, damos um passo atrás para, também,
ter uma visão crítica em relação ao modo como habitamos o espaço. Porque,
muitas vezes, é pura ocupação de espaço, pura marcação de território, puro
automatismo. É uma espécie de colonização do território da comunidade, ou do
território público. É sonambulismo existencial.
O “tzimtzum” permite olhar
para o tempo, não tanto para o espaço, e ouvir os múltiplos tempos que existem
dentro de nós. Santo Agostinho, nas Confissões, fala de três presentes: o
presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, e o presente das
coisas futuras. O tempo é superior ao espaço.
Uma última dimensão que
queria sublinhar é que este tempo de isolamento é muito intenso de relação. E é
um tempo de intensificação da relação. Porque é muito viciante, e é um jogo
viciado, acharmos que só existe uma forma de presença, ou que a ausência tem
sempre o mesmo sentido; que a distância e a proximidade se leem de uma forma
unívoca. Não
Este é um tempo de grande
escuta espiritual. Este é o momento para percebermos que a vida não se esgota
no momento, no instante, na arquitetura do quotidiano, mas que a vida tem uma
respiração muito maior. E nós temos de ouvir os passos do futuro, e dialogar
com o futuro de outra forma.
Não tenho dúvidas de que
entramos numa nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já
estaremos outra época. Culturalmente noutra época.
Civilizacionalmente noutra
época. Mas também espiritualmente noutra época da história. É importante que em
termos da espiritualidade também nos preparemos para entrar nesse tempo novo,
que já é o tempo que estamos a viver. Por isso, não podemos olhar para este
momento apenas como um parêntesis, como uma suspensão, e depois vamos voltar a
viver tudo o que vivíamos – isso não é ajustado à realidade. Temos de encontrar
novas linguagens; este tempo é um laboratório. E temos de ouvir o futuro, que
já está aqui, porque, como diz Santo Agostinho, há um presente do futuro.
Uma última dimensão que
queria sublinhar é que este tempo de isolamento é muito intenso de relação. E é
um tempo de intensificação da relação. Porque é muito viciante, e é um jogo
viciado, acharmos que só existe uma forma de presença, ou que a ausência tem
sempre o mesmo sentido; que a distância e a proximidade se leem de uma forma
unívoca.
Não. Muitas vezes estamos próximos e estamos completamente ausentes; muitas vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; muitas vezes estamos em comunidade e somos ilhas, não arquipélagos. E este é um tempo para redescobrir e retrabalhar as histórias de amor. E eu não tenho dúvida de que este tempo faz-nos descobrir tanto, tantas posibilidades.
Não. Muitas vezes estamos próximos e estamos completamente ausentes; muitas vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; muitas vezes estamos em comunidade e somos ilhas, não arquipélagos. E este é um tempo para redescobrir e retrabalhar as histórias de amor. E eu não tenho dúvida de que este tempo faz-nos descobrir tanto, tantas posibilidades.
Na história da cultura do
século passado, vemos que grandes obras da literatura, da filosofia, da música,
da pintura, da espiritualidade, aconteceram em contextos dramáticos, como o que
estamos a viver. Franz Rosenzweig, o grande filósofo, escreveu a sua Estrela da
redenção nas trincheiras da primeira guerra mundial; Messiaen escreveu a sua
obra mais famosa, o Quarteto para o fim dos tempos, num campo de concentração.
A Guernica, um dos símbolos da arte do século XX, foi escrita no impacto da
guerra civil espanhola.
Este não é um tempo para a
pura sobrevivência, este é um tempo para sonhos grandes, para projetos maiores
do que nós, é um tempo para dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para
sair da caixa, para reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um
tempo para sentir coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos
Uma das grandes místicas do
século XX é, sem dúvida, Etty Hillesum, esta jovem holandesa judia, muito
próxima do cristianismo, laica e crente ao mesmo tempo, que, podendo escapar do
campo de concentração, se oferece como voluntária para nele trabalhar, e nele
acaba como prisioneira. E Etty Hillesum diz esta coisa espantosa: este tempo em
que parece que a nossa alma soçobra, este é o tempo para olhar os lírios do
campo.
Há um desafio enorme neste
tempo. E vemos a quantidade de histórias de amor, pequenas histórias, os médicos,
os enfermeiros, o pessoal técnico, as pessoas dos laboratórios, tantos
sacerdotes, tantas comunidades; mas não só: tantos gestos de amor: as pessoas
que dizem, nos seus prédios, aos mais idosos, que vão fazer as compras; aqueles
que não querem deixar ninguém para trás; todos esses gestos de amor são alguma
coisa que está a transformar este tempo numa catedral.
Como é que eu vejo a
espiritualidade neste tempo de pandemia? É um tempo de kénosis, mas também de
graça; é um tempo de grande precariedade, mas é um tempo para descobrir o
precare, a força da oração; é um tempo para voltar às grandes perguntas; é um
tempo para criar memórias, para ouvir o futuro, para perceber que o tempo é
superior ao espaço.
Podemos pensar: este é um
ano para esquecer; este é um ano de vida adiada. Há um grande poeta de língua
portuguesa, António Ramos Rosa, que tem um verso maravilhoso:
«Não posso adiar o coração
para outro século». Este não é um tempo para a pura sobrevivência, este é um
tempo para sonhos grandes, para projetos maiores do que nós, é um tempo para
dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para sair da caixa, para
reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um tempo para sentir
coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos.
Eu dou um exemplo da porta
ao lado. O papa gosta de falar da santidade da porta ao lado. Na praça onde
está a casa onde vivo, estão algumas pessoas sem-abrigo. E, claro, eu procuro
ser cuidadoso, ser humano e ser próximo. Mas a verdade é que quando nós temos
uma casa, e estamos a falar com uma pessoa sem-abrigo, há uma diferença: nós
não estamos completamente naquela situação. Para mim, uma das coisas
extraordinárias foi, no primeiro mês após a pandemia, sair de casa e perguntar
«como está?» à senhora que dorme na rua, e ela perguntar-me: «E você, como
está?». E a pergunta era igual. Porque estávamos no mesmo barco, debaixo da
mesma tempestade. Penso que esta aprendizagem é de uma riqueza espiritual que
nos pode ajudar muito.
Card. José Tolentino
Mendonça
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