A dupla face da crise
Toda
crise é sinônimo de tempestade. Feito “o diabo na rua, no meio do redemoinho”,
para usar a expressão do poeta Guimarães Rosa. No céu de chumbo, escuras nuvens
se adensam. Ventos contrários sopram furiosamente em todas as direções. A crise
fere e redime, mescla e depura, separa e purifica. Rasga o tumor, seja para
expô-lo aos olhares estranhos, quanto para curá-lo. Vira do avesso fatos e
boatos, coisas e pessoas. Notícias verdadeiras e falsas se cruzam e recruzam.
Dúvidas e interrogações vêm à tona. As correntes profundas, e invisíveis,
atropelam as ondas superficiais, e visíveis. Perguntas e respostas trocam de
lado. O lixo longamente atirado para debaixo do tapete, é varrido e se espalha
por toda casa. Mágoas e ressentimentos ganham a luz do dia. Tensões e
contrastes batem-se e debatem-se.
Crise
é também sinônimo de situação-limite. Travessia árdua, labiríntica, acidentada.
Leva caminhar, com os pés descalços, sobre pedras e espinhos. Nós antigos e
novos, entraves e embates disputam tempo e espaço. Ambos se convertem em
terreno fértil para sonhos e lutas, ilusões e desilusões. A crise sempre
mistura e embaralha dores e esperanças, acarretando sofrimento e redenção.
Aponta o caminho da cruz, e esta torna-se via de ressurreição. Sofrer uma crise
é atravessar campo minado, onde não se pode correr, nem andar em linha reta. Ela
faz descer ao fundo do poço; mas aí chegados, tem início a subida. No fundo do
poço – ensina a sabedoria popular – há sempre uma espécie de mola que impulsiona
para cima.
Situação-limite
é tempo crítico, caótico, escorregadio. Predominam o medo e a angústia, a instabilidade
e a insegurança. O pranto e as lágrimas cegam, isolam e paralisam. Os joelhos
tremem e o chão parece fugir debaixo dos pés. As estrelas se apagam na noite fria
e escura. Os marcos indicativos somem da estrada. Em meio ao nevoeiro,
perdem-se o farol do porto e as referências da rotina cotidiana. “Tudo o que é
sólido se desmancha no ar” (Lê-se no Manifesto
Comunista de Marx e Engels). Luzes, buscas, verdades e certezas deixam-se
devorar pelo vórtice ameaçador da tormenta. Acabam sendo irremediavelmente
substituídas por opiniões, hipóteses, interpretações. Tudo converge sobre o
olho tenebroso do furacão. Experiência e memória, sentimento e emoção, afeto e
desafeto, depressão e euforia – tudo se alterna e se mescla, se funde e
confunde. Prevalece a sensação de vertigem: sobre uma ponte pênsil, eis o rio
endiabrado correr em turbilhões para o oceano que o há de engolir e neutralizar.
Em
semelhante “cenário líquido” (parafraseando Zygmunt Bauman), do mais fundo e
oculto das entranhas, emerge um vulcão de lavas e cinzas que sequer
imaginávamos que pudessem fazer parte de nossa existência íntima. O vulcão,
como manda sua natureza, solta no ar e ao redor o que de melhor e de pior
carregamos no íntimo. Oportuniza a revelação de uma dupla face que Freud
definia, respectivamente, como pulsão de vida e pulsão de morte. A pobreza, a
miséria e a fome do Nordeste – escreveu Jorge Amado – constituem campo fecundo
para o surgimento de santos e bandidos. Na disputa pelo pão, a luta pelo chão
se acirra ou se atrofia. Facilmente tornamo-nos animais, rangendo os dentes em
aberto conflito, como uma mantilha de cães sem dono diante de um osso
descarnado. Resta saber para que lado da balança nos sentiremos atraídos, e
isso, por sua vez, depende de uma série múltipla e complexa de fatores, que vão
das propensões genéticas e culturais até vícios adquiridos. Proliferam neuroses
e patologias.
A
velocidade do contágio provocado pelo Covid-19, com seu rastro macabro de morte
e luto, engendra essa espécie de tempo kairológico
(favorável, histórico, oportuno), tanto para o bem quanto para o mal. Diante do
caos ingovernável, os dois lados se revelam possíveis. Há pessoas que fazem de
tal situação um momento oportuno para o ódio, a vingança, o rancor, a raiva, a
agressão, o confronto e a violência – os oportunistas, propriamente falando.
Outros encontram aí um solo fecundo e sem igual para a acolhida, o encontro, o
diálogo, a simpatia, a compaixão, a aproximação fraterna e a solidariedade,
enfim, uma revisão das relações sociais.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro 09 de junho de 2020
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