A pandemia do Covid-19 representa uma lente de aumento
Pandemia:
lente de aumento para o Brasil real
Uma expressiva fatia da população
brasileira raramente mostra o rosto nos mais diferentes meios de comunicação
social. E quando porventura isso ocorre, tanto na imprensa escrita quanto na
TV, rádio ou Internet, ela aparece tímida, com cara de intrusa, sempre relegada
a uma espécie de rodapé nas páginas policiais ou no caderno cotidiano de
catástrofes. São os excluídos do
mercado de trabalho, ou nele perversamente incluídos nos serviços pesados,
sujos, perigosos e mal remunerados; são os invisíveis
que, em lugar de morar, “se escondem” nos grotões longínquos do sertão ou nos
porões sórdidos e periferias segregadas das grandes cidades; são os descartáveis, chamados ao palco da
história apenas para fazer, desfazer e refazer o cenário para os atores
sociais, e depois desaparecerem na multidão dos errantes sem pátria.
A pandemia do Covid-19 representa
uma lente de aumento sobre essa face oculta e anônima que o Brasil praticamente
desconhece. Ou que, mesmo circulando debaixo do nariz das multidões atarefadas,
estas últimas fazem questão de ignorar, como se se tratasse de “cidadãos de
segunda categoria”, às vezes sequer com o CPF em ordem. O famigerado “auxílio
emergencial” por causa do flagelo, de apenas seiscentos reais, os arrancou dos
esconderijos e os trouxe à luz nua e crua do dia. Enfileirou-os na porta da
Caixa Econômica Federal, mostrando ao vivo suas feridas envelhecidas e mal
cicatrizadas, suas chagas centenárias passadas de pai para filho, e suas
dívidas impagáveis devido ao acúmulo de indiferença e desinteresse por parte
dos poderes públicos. Desconhecidos e esquecidos e por séculos!
A crise sanitária vira do avesso
o tecido social, revelando um Brasil que o Brasil oficial esconde nos
subterrâneos da sociedade, como quem se acostumou a limpar a casa jogando o
lixo para debaixo do tapete. Soprando com força e fúria, os ventos da
tempestade entraram por baixo das portadas cerradas, subverteram a ordem das
coisas e das pessoas e, em plena sala de visitas, instalaram os excluídos, os
invisíveis, os descartáveis. Agora, eles desfilam pelas ruas e praças, invadem
as primeiras páginas dos jornais, tornam-se manchete nas telas e telinhas,
obtêm alguns minutos de visibilidade através de microfones, câmaras e
holofotes.
Meio que perplexos e atordoados,
os cidadãos de bem (ou de bens?) descobrem que eles têm um nome e sobrenome, um
rosto e um endereço fixo ou móvel, uma família que por vezes disputa
centímetros quadrados de espaços exíguos e insalubres!... Descobrem que, em
grande maioria, estão desempregados ou subempregados, num vaivém sem fim em
busca de parcos e pequenos “bicos”!.... Descobrem que são trabalhadores e
trabalhadoras, chamados informais, sem carteira assinada, sem qualquer tipo de
segurança sanitária!.... Descobrem que eles formam o elo mais fraco da corrente
social!.... E descobrem, enfim, que quando se rompe o elo mais frágil, toda
corrente torna-se debilitada e corre risco de colapsar.
Desdobram-se então, por toda
parte, os gestos e iniciativas de solidariedade. Pessoas, grupos, comunidades, igrejas,
instituições, empresas, etc. passam a recolher fundos e alimentos para
redistribuí-los aos famintos. As migalhas caem da mesa do rico avarento para as
mãos dos inumeráveis Lázaros. Mas a caridade, sempre bem-vinda, tem seus
limites. Importa não mexer na estrutura político-econômica cujo motor é o lucro
contínuo e a acumulação de capital. Ajudar sim, quando a fome chega tão perto
dos olhos e do coração. Mas nem pensar em redistribuição de renda. A riqueza
segue extremamente concentradas no pico da pirâmide socioeconômica, enquanto
nos andares de baixo prossegue a pobreza e a exclusão social. A injustiça, a
assimetria e o desequilíbrio entre os vários extratos da população permanecem
intocáveis.
Diante desse quadro, o grande
desafio é transformar a caridade momentânea em programa permanente de mudança e
reestruturação social, econômica, política e cultural. Um caminho para a
construção de uma sociedade justa e fraterna, digna e solidária. Só assim
poder-se-á caminhar para o desenvolvimento e a paz.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
vice-presidente do SPM – Rio de janeiro, 13 de maio de 2020
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