Periferias urbanas e metropolitanas hoje
Para
entender as mudanças que ocorrem nas periferias urbanas e
metropolitanas hoje, é preciso também compreender as “transformações
no mundo do trabalho”, diz o
geógrafo e doutor em Sociologia Gerardo Silva à IHU
On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail,
ele explica que o desenvolvimento das metrópoles esteve
associado à industrialização, mas a crise do fordismo, ainda na década de 80,
teve um impacto na “capacidade de significar a cidade”. “O impacto sobre as
periferias metropolitanas desta mudança foi profundo uma vez que as estratégias
de vida voltadas para o trabalho fabril – ou assalariado de um modo geral –
desapareceram do horizonte”, diz. A consequência, avalia, é que “a
possibilidade de construir um futuro baseado no trabalho estável dentro de
alguma empresa é cada vez mais restrita, e, portanto, as estratégias dos
trabalhadores nesses territórios periféricos estão se reconfigurando,
tornando-se mais autônomas e empreendedoras (aliás, a recente pesquisa da
Fundação Perseu Abramo sobre ‘Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo’ aponta algumas evidências nessa
direção)”.
Hoje,
diz, o trabalho é organizado “fora da fábrica”, na “metrópole”, porque
“trata-se de um novo tipo de trabalho mais próximo dos processos de
comunicação, inovação e criação. Um trabalho de tipo cognitivo, no qual o
intelecto se torna a força produtiva por excelência. A questão é que o trabalho
cognitivo ou do intelecto se nutre da vida urbana, da sua
multiplicidade de experiências, da sua diversidade, dos seus lugares de
encontro, das suas redes de relações, das universidades e centros de pesquisa,
das manifestações culturais, inclusive e, sobretudo, das periferias”.
Gerardo Silva diz ainda
que, “embora as mazelas” da vida social nas periferias “ainda permaneçam como um grande desafio para
as políticas públicas”, as comunidades que vivem nesses territórios
“têm se empoderado bastante e têm ganhado, sobretudo, o poder de expressar-se
através da sua própria voz. Isto significa que se historicamente a periferia
era vista como o lugar dos sem voz e das mediações demagógicas do sistema
político, ou inclusive dos intelectuais e pesquisadores, hoje isso me parece
que não funciona mais assim. As demandas e as agendas políticas das
periferias estão sendo construídas pelos próprios atores que habitam
esses territórios e que são capazes de dialogar, confrontar e, no limite,
antagonizar com os poderes constituídos e com as formas tradicionais de
planejamento de cunho tecnocrático, seja ele de direita ou de esquerda”,
salienta.
Gerardo Alberto Silva possui graduação em Geografia pela
Universidad Nacional de Mar del Plata, na Argentina, mestrado em Planejamento
Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e
doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro/UCAM. Atualmente é professor adjunto da área de Planejamento e Gestão
do Território da Universidade Federal do ABC - UFABC.
Gerardo
Silva esteve
no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, participando do “5º Ciclo de estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de
Governo. A centralidade das periferias brasileiras”, em 15-05-2017 , onde ministrou
a palestra “Do morro ao
asfalto. As novas centralidades da periferia e a metrópole policêntrica”.
Confira a
entrevista.
IHU
On-Line - Quando se trata de discutir a situação das metrópoles e das
periferias, quais são as principais questões que devem ser consideradas?
Gerardo
Silva - Em
termos gerais, as periferias são
vistas cada vez mais como espaços de produção de cidadania. Embora as mazelas e
as dificuldades da vida social nesses territórios ainda permaneçam como um
grande desafio para as políticas públicas, elas têm se empoderado bastante e
têm ganhado, sobretudo, o poder de expressar-se através da sua própria voz.
Isto significa que se historicamente a periferia era vista como o lugar dos sem
voz e das mediações demagógicas do sistema político, ou inclusive dos
intelectuais e pesquisadores, hoje isso me parece que não funciona mais assim.
As demandas e as agendas políticas das periferias estão sendo
construídas pelos próprios atores que habitam esses territórios e que são
capazes de dialogar, confrontar e, no limite, antagonizar com os poderes
constituídos e com as formas tradicionais de planejamento de cunho
tecnocrático, seja ele de direita ou de esquerda.
IHU
On-Line - Qual é a centralidade que as periferias ocupam hoje nas cidades
contemporâneas, se comparadas a outros momentos?
Gerardo
Silva - O empoderamento é
o que, a meu ver, faz a diferença. O empoderamento e o protagonismo. Houve um
período da história das grandes metrópoles do país em que
a periferia era
enxergada (de maneira legítima provavelmente) como uma consequência do processo
de urbanização e da migração do campo para a cidade, sobretudo para as grandes
cidades. Nesse sentido, o principal problema (dos pesquisadores e dos
formuladores de políticas urbanas) era sobre como fazer para integrar essas
pessoas à vida urbana, isto é, como ampliar as condições de acesso à cidadania
através da melhoria da habitação e do transporte principalmente. Era
necessário, portanto, que o Estado interviesse pesadamente no desenvolvimento
das cidades. Essas condições ainda permanecem, certamente. Porém agora as
periferias exigem participar e serem escutadas nas suas demandas.
Finalizado
o ciclo de expansão e crescimento rápido das grandes metrópoles,
estabilizados os fatores que obrigavam permanentemente os territórios
periféricos a se adaptarem a essa condição, o que veio a seguir foram
reivindicações pelo direito à cidade de um modo mais
abrangente que antigamente. A periferia tem agora sua própria agenda, sabe o
que quer e batalha pelo seu reconhecimento.
IHU
On-Line - As atuais transformações no mundo do trabalho têm modificado a vida
nas cidades, nos seus diferentes espaços? Que implicações essas transformações
têm gerado especificamente nas periferias?
Gerardo
Silva - A
compreensão das transformações no mundo do trabalho é essencial para entender as mudanças
nas periferias urbanas e/ou metropolitanas hoje. A própria
ideia de metrópole, no sentido contemporâneo, está associada à
industrialização, ao crescimento das cidades sob impulso dos arranjos
industriais da grande fábrica, geralmente instaladas nos arredores da cidade.
No Brasil e na AméricaLatina em geral, essa
relação entre desenvolvimento industrial e urbanização nunca foi muito
equilibrada, pelo contrário. Houve industrialização, sim, porém limitada a
algumas grandes metrópoles e com igualmente limitada capacidade de absorção de mão
de obra ao longo do tempo (com exceção, talvez, do grande ABC
paulista). Contudo, esse horizonte do desenvolvimento, que poderíamos
chamar de “norma fordista”, permaneceu ativo como ordenador das ideias do
planejamento urbano.
Desde a
década de 1980, entretanto, a norma fordista entrou em crise e
nunca mais recuperou sua capacidade de significar a cidade (a não ser na China,
mas não estou muito certo se esse tipo de industrialismo pode ser chamado
de fordista). O impacto sobre as periferias metropolitanas desta
mudança foi profundo uma vez que as estratégias de vida voltadas para o
trabalho fabril — ou assalariado de um modo geral — desapareceram do horizonte.
Em outras palavras, a possibilidade de construir um futuro baseado no trabalho
estável dentro de alguma empresa é cada vez mais restrita, e, portanto, as
estratégias dos trabalhadores nesses territórios periféricos estão se
reconfigurando, tornando-se mais autônomas e empreendedoras (aliás, a
recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre “Percepções e
Valores Políticos nas Periferias de São Paulo” aponta algumas evidências nessa direção).
IHU
On-Line - Na última entrevista que nos concedeu, ao comentar as manifestações de
2013, o senhor disse que "o que está em jogo nas cidades é a dimensão
produtiva da metrópole e não apenas uma simples melhoria do transporte
público" ou de pautas similares. Pode nos explicar essa ideia? O que seria
a dimensão produtiva da metrópole e que disputas existem em relação a esse
aspecto?
Gerardo
Silva - Em
termos estritamente marxistas, fora do chão de fábrica (lugar de extração da
mais-valia) não existe trabalho produtivo. Existiriam, sim, as chamadas
“condições gerais de produção” (equipamentos, infraestruturas e serviços que
tornam possível o ciclo produtivo da mercadoria) e os “espaços de reprodução”
(consumo e reposição de energias da classe trabalhadora). Ou seja, a cidade se
organiza em torno da fábrica (no caso, da grande fábrica) para
tornar possível as relações sociais capitalistas. Trata-se de uma relação
conflitiva, evidentemente, mas é essa a finalidade. O que acontece, porém,
quando a manufatura deixa de ser o elo mais importante da cadeia de valor ou,
dito de outra maneira, quando o chão de fábrica, outrora núcleo duro da
acumulação capitalista, é jogado para o escanteio? O que garante ainda a
produção de riqueza?
Bom, eu
acredito que o trabalho fora da fábrica, na metrópole. Trata-se de
um novo tipo de trabalho mais próximo dos processos de comunicação, inovação e
criação. Um trabalho de tipo cognitivo, no qual o intelecto (o “intelecto
geral” que falava Marx nos Grundrisse) se torna a força produtiva por
excelência.
A questão
é que o trabalho cognitivo ou do intelecto se nutre da vida urbana, da sua multiplicidade de
experiências, da sua diversidade, dos seus lugares de encontro, das suas redes
de relações, das universidades e centros de pesquisa, das manifestações
culturais, inclusive e, sobretudo, das periferias. É nesse sentido que falamos
da dimensão produtiva da metrópole que, no limite, vem
substituir o chão de fábrica.
IHU
On-Line - Como se formula e executa, em geral, o planejamento e a gestão do
território nas grandes cidades hoje?
Nesse
sentido, que aspectos deveriam ser considerados para um bom planejamento e
gestão do território em uma cidade?
A metrópole precisa de menos planejamento e mais diálogo entre os
atores, mais canais de comunicação e de acordos, e não de consensos vindos de
cima para baixo
Gerardo
Silva - Trata-se
de um momento difícil para o planejamento das cidades. Não existem mais
critérios unificadores de intervenção urbana através do
planejamento. Por um lado, ainda temos os problemas clássicos de saneamento,
habitação e transporte. Isso ainda é um problema nas nossas cidades. Por outro
lado, entretanto, para além desses problemas clássicos, as agendas são
conflitantes. Acredito que é preciso prestar mais atenção a essas agendas,
aprender a lidar com elas. Como fazer emergir dos territórios, em particular
dos territórios periféricos, demandas singularizadas e específicas que se correspondam
com as novas formas de organização do trabalho na metrópole? Quem são os atores que estão
operando essa reconfiguração das estratégias de que falávamos anteriormente? O
que eles têm a dizer e a oferecer? Creio que seja praticamente impossível
responder a essas perguntas com os velhos instrumentos de planejamento.
Talvez o
que a metrópole esteja precisando seja de menos planejamento e
mais diálogo entre os atores, mais canais de comunicação e de acordos, e não de
consensos vindos de cima para baixo através de planos ou projetos elaborados
por especialistas, sejam eles participativos ou não.
IHU
On-Line - Qual o papel da juventude nas dinâmicas periféricas? O que está
acontecendo com os jovens nesses territórios?
Gerardo
Silva - Os
jovens são um elemento vital dessa nova condição periférica que confronta os
poderes constituídos tanto o plano material quanto simbólico. Eles são
provavelmente os que estão indo mais longe nesse processo de substituição do
chão de fábrica pelos territórios da metrópole como âmbito do trabalho e da
produção (isto é, no reconhecimento da dimensão produtiva da metrópole). Os conflitos
recentes em torno das ocupações da escolas nas periferias de São Paulo, por
exemplo, mostram a força dos jovens que demandam uma escola melhor para um
futuro melhor. Foram também jovens da periferia que lutavam pela mobilidade
e/ou pelo acesso à cidade que originaram as jornadas de junho de 2013. Da mesma
forma, a Lei de Fomento à Cultura da Periferia, sancionada recentemente pela
Prefeitura de São Paulo, foi uma conquista dos coletivos de cultura,
constituídos maioritariamente por jovens, que conseguiram se organizar e se
articular politicamente para ver reconhecidas suas iniciativas – que, diga-se
de passagem, vão muito além das manifestações culturais propriamente ditas. Ou
seja, são os jovens da periferia que estão levando a luta social para um outro
patamar, para além das lutas por terra e por moradia. Como eles costumam dizer:
“é nós!”. É preciso que permaneçamos atentos a essa mensagem no que ela tem de
mais afirmativo e potente.
Entrevista realizada e publicada
pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
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