A armadilha da violência em Rondônia.

Armas da Fazenda do Italiano em Alvorada do Oeste. Ro (foto alvorada notícias) 

O faroeste rondoniense. Na ocupação desordenada da terra de Rondônia, promovida inicialmente pela ditadura militar, a iniciativa particular dos colonos e dos fazendeiros e empresários ávidos por novas terras rapidamente converteu o estado no novo faroeste brasileiro. Nomes de nossas cidades, como Colorado do Oeste, Alta Floresta do Oeste ou Alvorada do Oeste não indicam somente uma situação geográfica no oeste do mapa brasileiro. Com semelhança com a ocupação da costa oeste norte-americana, remetem-nos a regiões onde não existia o império da lei e da ordem. Em Rondônia as iniciativas governamentais perderam o controle da colonização, que passou a ser caótica, desordenada e devastadora do território, com o desmatamento e a destruição de mais do 30% das florestas em poucas décadas. 

A ocupação foi realizada na base da espingarda. Sem o domínio da lei, quem se apoderava da terra sempre eram os mais poderosos, os mais corruptos, violentos ou gananciosos. A lei do cão. A filosofia política do neoliberalismo, onde o estado deve deixar a iniciativa ao mercado, e o que deve fazer é atrapalhar o menos possível, se traduziu em desmantelamento e do aparato do estado, particularmente do INCRA, o Instituto de Colonização e de Reforma Agrária. Os pequenos somente tinham vez quando unidos compactamente e bem organizados enfrentavam os poderosos. Daí a necessidade de estruturar e organizar solidamente os movimentos sociais, como o MST. 

São 35 anos da Comissão Pastoral da Terra em Rondônia. Faz décadas que na CPT estamos neste contexto, defendendo e apoiando a organização dos pequenos agricultores vitimados pela prepotência dos poderosos, contra o sofrimento provocado em milhares de famílias que enganados pela propaganda, vieram a Rondônia sonhando com um pedaço de terra. Ajudando a resistindo nela, em comunidades tradicionais esquecidas, que resistem ao abandono. Nem muitos dos mais antigos ocupadores, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos, conseguiram até hoje ver reconhecidos os seus direitos territoriais. (continua)

Uma injusta distribuição das terras. Com a colonização de Rondônia, ¾ partes da terra destinadas a agricultura foram parar nas mãos do latifúndio, e 80% dos pequenos agricultores ocupam apenas 20% das terras de lavoura. Em muitos destes latifúndios, como a Fazenda Nova Vida de 16.000 hectares, situada entre Ariquemes e Jaru, ainda perdura viva na memória dos moradores da região central um historial de impunidade de assassinatos e de violência contra as famílias de pequenos agricultores. Tal vez por isso, a Fazenda Seringal, disputada pela Viúva do Nenê da Nova Vida, com título de propriedade controvertido, hoje continua sendo alvo da demanda por terra dos pequenos agricultores da região de Jaru, e de um recente acampamento do MST na estrada de Cacaulândia. Para boa parte do povo de Rondônia Fazenda “Nova Vida” e um símbolo da velha, cruel e injusta opressão para os pobres e humildes da terra. 

O trabalho escravo e o assassinato de pessoas. Enquanto perdura a moderna escravidão, no histórico de Rondônia muitos pequenos agricultores ficaram marcados pelo trabalho forçado e a escravidão mais degradante. Também a Fazenda da Ilha das Flores, de 35.000 hectares, de propriedade da mesma família Arantes, mantém um historial de escravidão e mortes, vivo na memória dos quilombolas e ribeirinhos do Rio Guaporé. 

Os pequenos somente tinham vez quando bem unidos e organizados. Os pequenos precisavam a coragem dos desesperados, dispostos a enfrentar a pistolagem e a violência dos grandes grileiros de terra e a dobrar o aparelho do estado, totalmente colocado ao serviço dos primeiros. Assim foi como foram possíveis alguns assentamentos conseguidos pelos militantes do MST e outras organizações, em lugares como Espigão do Oeste, Mirante da Serra, Urupá e Corumbiara. A base da luta sofrida e violenta, em legítima defensa, respondendo as armas com as armas e enfrentando a violência pesada do estado e do latifúndio. 

Um sistema extremamente injusto de distribuição da terra. Este sistema reproduziu a triste realidade da ocupação brasileira e continuou perpetuando a violência provocada pela desordem estabelecida, consagrada pelo aparelho jurídico e repressivo. Após o massacre dos indígenas, conhecidos na época como Omerê, na mesma região houve o Massacre de Corumbiara. O dia 09 de agosto de 1995, faz dezoito anos jagunços e polícia foram acusados até de utilizar crianças e mulheres como escudo humano para reduzir a resistência armada no Acampamento de Santa Elina. Somente dezesseis anos depois, em 2012, ao custo de pagamento de indenização de 53 milhões de recursos públicos entregues aos grandes grileiros da área, a terra foi distribuída as famílias remanescentes das vítimas da violência. As vítimas da violência criminosa praticado pelo governo de Valdir Raupp, que atingiu mais de 500 sobreviventes, não viram até hoje o pagamento das indenizações ordenadas pela justiça. 

Avanço da fronteira agrícola e novas ocupações. Em resume, Rondônia é fruto duma ocupação caótica e desorganizada pela violência, o que em parte continua nos mesmos moldes. Hoje continuamos registrando a violência em muitas áreas, como as de retirada ilegal de madeira e o avanço da frente agrícola acima da floresta nas regiões próximas ao estado, no sul do Amazonas. Pressão do latifúndio de das monoculturas do agronegócio no sul do e na capital do estado. E também registramos novo crescimento das ocupações e demanda por terra, de famílias que não tem mais como conseguir emprego e sobreviver com dignidade nas periferias das bossas cidades. O encarecimento da vida e o fim dos empregos nas usinas do Madeira parecem ter a ver com isto. 

A violência continua hoje. Após o assassinato de um dos sobreviventes de Corumbiara, Adelino Ramos, o Dinho, liderança do MCC, em Vista Alegre de Abunâ em maio de 2011, Rondônia tem vivido uma nova etapa de pistolagem, violência, ameaças de morte e assassinatos. Durante 2012 a CPT registrou em Rondônia o maior número de mortes no campo de todos os estados do Brasil. Parece que estamos voltando as décadas de 70 e 80. 

Repressão da luta pela terra. O estado parece continuar ao serviço apenas dos poderosos. Ações movidas pelos pequenos agricultores languidescem nos fórum de justiça. Quando uma área é ocupada para reforma agrária, rapidamente surge a repressão violenta, da mão da polícia do estado ou de jagunços contratados. A polícia às vezes sequer registra os BO apresentados pelos pequenos agricultores e mais dificilmente investiga os atos de violência e reprime os opressores dos pequenos agricultores que demandam reforma agrária. Ocupações de terra são reprimidas até antes de acontecerem. As decisões judiciais de reintegração de posse são quase imediatas e às vezes antecedem a qualquer ameaça de ocupação. A atuação parcial, abusos de poder e violência da polícia acaba se convertendo numa violência institucional e verdadeiro terrorismo de estado, promovida por quem a deveria evitar. 

As injustiças acontecidas são muitas. O que tem acontecido com as famílias de posseiros da Associação Água Viva, do município de Chupinguaia, clama céus e terra. Ocupadores duma área que supostamente forma parte da Fazenda Dois Pingüins (esta sim formada e com exploração pecuária), as famílias de pequenos agricultores que tinham se estabelecido no local convertendo em produtiva uma área completamente abandonada, se viram despejados dela sem possibilidade de defesa. Quando desesperados tentaram voltar para suas próprias casas, foram recebidos a tiros pelos jagunços da Família Caramello, resultando um posseiro e um pistoleiro feridos. A polícia expulsando a tiros os pequenos agricultores e prendendo e maltratando suas mulheres, acusando os pequenos agricultores. 

Prisão e criminalização. Os apoiadores, o presidente do sindicato Udo Walhbrink, um vereador e a liderança duma associação vizinha, amargaram sete meses de cadeia, acusados de formação de quadrilha. E a justiça, bloqueando suas contas e condenando um total de 18 pessoas a penas de mais de 150 anos de cadeia! Enquanto o fazendeiro que comprou a área dos Caramello hoje mora na casa de material construída por um dos posseiros condenados, o Sr. Diorande, e o resto das famílias está literalmente, jogada a beira da estrada num acampamento na entrada da cidade de Chupinguaia, criminalizados por ter tentado defender a todo custo os seus interesses legítimos. 

Dois pesos duas medidas. Converteram dignos agricultores em sem terras. Posseiros com direito de usucapião, morando e produzindo em terra abandonada, hoje encontram-se vivendo em situação lamentável, dependentes de ajudas sociais, para benefício de quem tomou a terra deles. A prisão deles contrastou em Vilhena e no sul do estado com a impunidade do Sr. Hilário Bodanese, do qual foram presos em flagrante armas e pistoleiros, acusados de ter perseguido lideranças e ter ferido dois dos acampados do Barro Branco, em fazenda em Chupinguaia que também estava abandonada. 

A injustiça agrária legalizada. Nos dois locais citados existe um desses 45 títulos provisório uma CATP (contrato de alienação de terras públicas), onde existem conflitos de terra, e que o Terra Legal declarou todos inadimplentes, terras que por tanto devem ser retomadas ao domínio da União e serem destinadas para reforma agrária. Porém estes processos sofrem todo tipo de travas legais e burocráticas, com eternas discussões sobre competências legais: Se é competência da justiça estadual ou da justiça federal. Se é competência do INCRA ou do Terra Legal... Assim enquanto os processos que devem decidir sobre a propriedade pública ou não da terra dormem nas prateleiras dos fóruns, se eternizam os conflitos na geografia do Estado. Enquanto as reintegrações de posse não beneficiam os que realmente ocupam e producem na terra, os posseiros, mas os titulares das CATPs, títulos provisórios de terra entregues pelos militares, mesmo sem jamais tenr cumprido as cláusulas condicionantes dos títulos, nem morado ou plantado nada no local. 

Justiça rápida para umas coisas, lenta para outras. Os processos de reintegração de posse rapidamente são decididos, com liminares de despejo dos camponeses. Assim os posseiros apenas foram utilizados como mão de obra, que de graça abriu a área, plantou e beneficiou a troca de nada. Porém não avançam os processos de retomada movidos pelo INCRA, de deviam devolver a terra para domínio da união e possibilitar a reforma agrária. E se decidem por separado sobre a mesma área, em processos diferentes. sobre a posse da terra sem aguardar a decisão sobre de quem realmente deve ser a propriedade. 

Desobediência civil. A única alternativa dos camponeses parece ser fazer o que sabem fazer: Trabalhar e produzir na terra que precisam ocupando terras abandonadas. O que todo o mundo fazia nestas décadas de omissão do papel do estado e de grilagem generalizada de terras como forma de ocupação da Amazônia Nem que para continuar ocupando terras seja necessária a desobediência civil e a teimosia de reocupar as mesmas terras já beneficiadas, inclusive a rebeldia das decisões judiciais. Assim acontecem demorados conflitos onde os sem terra já foram despejados até oito e nove vezes, enquanto as possibilidades de legalização da situação e de reforma agrária não avançam. 

Não é reconhecida a função social da terra. Poucas vezes é contemplada a função social da terra, reconhecida na constituição, e aplicada à necessidade legal de consultar com o ministério público as situações de conflito agrário que atingem conflitos agrários. Em Rondônia quase nunca é reconhecida a competência dos juízes agrários estaduais, decidindo juízes locais não especializados temas agrários complicados, onde sequer a competência estadual dos mesmos é clara. Com frequência os juízes culpam o INCRA nas decisões tomadas contra os pequenos agricultores. E quando você vê o absurdo da justiça federal tratando de invasores e mandando despejar até famílias assentadas pelo governo, a gente não pode deixar de pensar que pouca justiça os camponeses podem esperar do conjunto de instituições que administram a temática agrária. 

Desespero e a tentação da violência. Muitos agricultores desesperam. A tentação de devolver a violência com violência é grande. Também a impotência e a revolta ao sentir o peso dos poderes do governo, da polícia e do judiciário se abater esmagando qualquer intento de resistência. Muitos deles sequer têm acesso a advogado, e resulta difícil o atendimento da defensoria pública. A capacidade econômica de grandes proprietários e grupos empresariais para recorrer e pleitear na justiça eterniza os conflitos e dificulta qualquer reação legal dos pequenos. 

Impunidade da violência agrária. Não é incomum que a aplicação de medidas judiciais estejam acompanhadas de atuação impune de pistoleiros e de medidas abusivas policiais. Enquanto as lideranças são duramente perseguidas e reprimidas, sendo presas e condenadas pela polícia ao menor indício de violência, os pistoleiros são protegidos e os seus crimes permanecem na impunidade. Ameaças, agressões, expulsões, intentos de homicídio e assassinatos permanecem a maior parte na impunidade. Os autores são conhecidos e denunciados, porém é muito difícil que sejam presos, apuradas e condenadas as violências de autores e mandantes. 

A tentação da violência é grande. O fato é que os pequenos agricultores não tem acesso real ao necessário “Estado de Direito” para defender seus direitos. A frustração, a raiva e a revolta não para de aumentar e excluir do convívio social os mais vitimados. Assim famílias de pacatos agricultores, que somente queriam terra para trabalhar com autonomia e dignidade, estão tentados de reagir com violência, tendo a polícia, os juízes e o estado como os principais inimigos. “Pai, quando venha a polícia você vai comprar um revólver para mim?”, contava chorando um pai ter ouvido do seu filho de menos de dois anos. 

Acabar com a conquista da terra pelas armas. Não são poucos os companheiros/as que consideram legítimo o uso de armas para se defender da violência. Tenho ouvido relatos na própria CPT daqueles que tinham participado de vaquinhas para compra de munição, para ajudar a autodefesa das famílias de locais extremamente agredidos pela pistolagem. O que considerem ainda necessário postar sentinelas armados para proteger mulheres e crianças dos jagunços. O direito de defesa da própria vida é reconhecido até legalmente. Porém qualquer porte de armas nos pequenos rapidamente é punido. Porém as ilegalidades dos fazendeiros facilmente são encobertas e toleradas com cumplicidade de quem deveria preservar a ordem e a paz.

A armadilha da violência. Ao final o uso da violência como método de luta pela justiça na terra coloca o povo numa luta desigual onde tem tudo a perder. E acaba sendo prejudicial para uma justa causa, e utilizada para colocar a opinião pública contra as legítimas reivindicações dos sem terra a necessidade da reforma agrária. A violência provoca mais violência e se converte numa armadilha que somente justifica mais repressão e violência. Enquanto a maioria dos movimentos sociais acreditam que precisamos de mobilizações e de luta política, no marco do estado democrático, alguns pregam contra o sistema implantado e a revolta contra todas as instituições. 

Os camponeses que aceitam e praticam a violência. Sejam os que forem, os pequenos agricultores e camponeses/as que não relutam em utilizar a violência, quando necessário para os seus objetivos agrários, acabam realizando um fraco favor a todas as outras organizações e as legítimas reivindicações de justiça no campo. Eles ajudam a deslegitimar na opinião pública todos aqueles que de forma pacífica, porém não menos combativa politicamente, defendem a legítima função social da terra, a necessidade de distribuir as terras públicas, aquelas mal aproveitadas e abandonadas, entregando as abandonadas para os pequenos agricultores. Pois pela violência todos os sem terra acabam sendo colocados no mesmo saco. Alguns que acham que com seus métodos fazem avançar a luta, em realidade às vezes atrapalham a justa resolução dos conflitos. 

Não adianta somente exigir do Estado o fim da impunidade da violência. Além de combater a violência contra os pequenos agricultores, também precisamos estar contra toda a violência. Além da violência dos mais poderosos e do estado, também temos que estar contra os abusos e injustiças praticadas pelos pequenos, por mais que os possamos achar justificados. A vingança e a violência não são boas conselheiras, nem boas companheiras do justo combate. E o enfrentamento dos pequenos contra os grandes muitas vezes se converte em enfrentamento dos pequenos contra os pequenos, acusados uns de violentos, e os outros de pelegos, traidores ou contemporizadores dos interesses contrários. 

Divisão das organizações populares. Quando numa área um grupo de pequenos agricultores consegue resistir na posse da terra ou consegue uma das escassas sentenças favoráveis, uma das estratégias utilizada é a infiltração de pistoleiros, bandidos e traficantes, que entram violentamente, oferecem sumas exorbitantes de dinheiro por demarcações precárias de terra, ameaçam opositores e tumultuam o local, tentando atingir as lideranças e dividir as organizações. Nós temos visto isso acontecer em Vilhena e outros lugares. Assim muitas vezes a violência se volta de uns contra os outros. Enfrentando as organizações populares, dividindo o interior das entidades e desmoralizando as justas bandeiras agrárias de pão, fartura e terra para todos. Provocando perdas irreparáveis, mágoas e ressentimentos. Todos os pequenos acabam saindo perdendo destas brigas. 

A violência é a melhor desculpa para a repressão. A violência interna e a provocação de divisões são a primeira estratégia utilizada e a melhor desculpa para acabar com os movimentos. Por isso a democracia interna, o respeito mútuo, a transparência e os hábitos dum jeito de agir não violento, no interior das organizações, tem ser o primeiro passo de uma atuação não violenta a favor dos povos da terra e das águas.  A democracia interna é difícil atingir, porém “aquele que não é capaz de governar a si mesmo, não será capaz de governar os outros”. (Gandhi) 

A força da verdade e da justiça. E não se trata somente duma questão de propaganda e de opinião pública. Mostrar a verdade, a legitimidade e a justiça duma luta é o primeiro passo para a vitória. Em cada jornalista que cobre uma situação e informa dum problema, está também uma interpretação do mundo e uma visão pessoal da justiça. E em cada pessoa uma capacidade de compreensão e de arbítrio do que justo e bom. Assim muitas vezes os sem terra e a causa agrária perdem o seu apoio pelo uso de métodos violentos. 

A violência tira o apoio de todos. Daí também dentro da Igreja, parte das nossas dificuldades de aceitação da Pastoral da Terra e de ter que estar sempre justificando a necessidade de apoiar uma distribuição mais justa da terra como querida por Deus, que “criou o mundo para todos”. As violências e injustiças praticadas pelos próprios companheiros/as de viagem sempre dificultam a compreensão de como é justa e necessária uma revolta pacífica, porém ativa e combativa, dos pobres da terra e de sua luta por justiça. 

Gandhi, a grande figura da não-violência ativa. Gandhi que conseguiu a libertação de 700 milhões de indianos em 1947 da dominação do império britânico, dizia que sua esposa foi o seu mestre de não violência: «Foi a minha mulher (Kasturbai Makanji Gandhi) que me ensinou a não-violência, quando tentei dobrá-la à minha vontade. A sua obstinada resistência, de um lado, e, do outro, a tranquila submissão no sofrimento que padecia por causa da minha estupidez, agiu de tal modo em mim que comecei a envergonhar-me e deixei de acreditar que tinha por natureza o direito de dominá-la. Destarte, ela tornou-se o meu mestre da não-violência». E o colonialista império britânico era tanto ou muito mais injusto, repressor e violento com os indianos que os estados atuais. 

Legalidade não significa sempre justiça. Cabe aqui também uma reflexão sobre a importância do papel do estado e das instituições públicas para superar os conflitos agrários e a violência. A legalidade, o estado de direito e o judiciário têm a função de servir de marco para resolução pacífica dos conflitos, com o respeito ao estado de direito. Se existe conflito, o lugar de resolução não pode ser a violência das armas, deve ser no fórum judicial. E quando as próprias leis e as decisões judiciais e do executivo são parciais e injustas, então precisamos de toda a mobilização política e social para recuperar a soberania popular da função do Estado, ao serviço do bem comum. 

Soberania popular significa exigir do Estado a sua vocação. A violência, a ilegalidade e a injustiça é tanto mais grave quando parte daqueles que tem a obrigação de a defender. As autoridades devem servir para superar a violência, fundar a paz e a convivência social, e por isso devem ser respeitadas. Por isso as autoridades tem o dever irrenunciável de estar ao serviço do bem comum. A justiça e a verdade não podem ser relegadas. E em último termo, e a moral e a ética devem guiar as leis e a sua aplicação se submeter a elas, a procura suprema do Bem e da Justiça.

Desobediência civil. Quando a autoridade legislativa, executiva ou judicial não obedece ao bem comum, ajustiça e a defesa dos mais fracos, a superação da violência passa pela mudança das leis injustas, pela exigência de responsabilidades das atuações dos governos e pela subversão da injustiça e desordem estabelecida, inclusive com sentencias judiciais inaceitáveis. E para isso ás vezes pode ser preciso “obedecer primeiro a Deus do que a os homens” (Atos 5), estra dispostos a desobedecer leis injustas e a sofrer por isso. Quantos defensores dos direitos humanos, como Nelson Mandela, não passaram anos a fio presos e na cadeia, reprimidos injustamente? As suas condenas mostraram ao mundo a injustiça dos sistemas e governos imperantes nos seus países. Muitos deles tinham adotado a luta não violenta como método de combate.

Não violência não significa renunciar a resistir e a lutar. Mas o que é a não-violência ativa e combativa? Em que consiste a sua prática? O espírita Enrique Baldovino[i], de quem também recolhi as passagens evangélicas de mais abaixo, escreveu: “Nas seguintes palavras textuais de Gandhi entenderemos melhor qual é a essência do pensamento-ação da não-violência: «O que quer que façam conosco, não iremos atacar ninguém nem matar ninguém; estou pedindo que vocês lutem, que lutem contra o ódio deles (do governo inglês), não para provocá-lo. Nós não vamos desferir socos, mas tolerá-los, e através do nosso sofrimento faremos com que vejam suas próprias injustiças e isso irá feri-los, como todas as lutas ferem, mas não podemos perder, não podemos... Eles poderão torturar meu corpo, quebrar meus ossos, até me matar, então terão meu corpo inerte, mas não a minha obediência». 

A não cooperação e a desobediência ativa. Continuando com Enrique Baldovino: “A não-violência ensina que o poder de uns depende da cooperação de muitos outros. Assim, a não-violência faz desmoronar o poder dos dirigentes quando consegue extinguir grande parte desta cooperação — um punhado de pessoas não pode mandar em milhões de outras se elas se recusarem a obedecer”. Nós temos visto isto quando a própria polícia reconheceu, que se o povo não queria, não ia ter final da Copa das Confederações. E a força do povo se alicerça no poder da verdade e da razão. Quando a causa é justa e certa, ele merece e ganha o apoio. 

Não podemos pensar que a violência se justifica para fins bons. E que por tanto devemos combater a violência dos poderosos, porém não podemos apoiar a violência nem que tenha como objetivo a igualdade e justiça. Para Gandhi o meio, o caminho que utilizamos, determina, molda e constrói o fim onde queremos chegar. Ele chegou a comparar os meios com as raízes e o fim a um árvore. “O uso da violência como meio corrompe e impede a chegada a um fim nobre e justo. Só por meios justos pode-se alcançar um fim justo. Não é possível construir uma sociedade pacífica pela violência, ou uma sociedade honesta pela desonestidade (que também é uma forma de violência). O que começa mal não pode acabar bem” . 

Continuam acontecendo em Rondônia enfrentamentos armados. E o enfrentamento não é somente contra os grandes proprietários. Também de divisões internas.A violência faz perder toda simpatia para os sem terra. O recurso a violência como forma de resolver os problemas e conflitos internos, acaba dividindo os camponeses e também as entidades, que os apoiam nas justas reivindicações de terra. E a mentira derruba a força de qualquer luta e mobilização. 

Um estado dentro de outro estado. Quando um acampamento de sem terra é montado, precisa duma rígida organização democrática própria. Organizando seus espaços democráticos de eleição de lideranças e de tomadas de decisões. Criando suas coordenações, criando suas próprias normas e regras de convivência e as fazendo cumprir. Atendendo entre todos as necessidades de saúde, de educação, de alimentação. Cuidando especialmente das crianças e dos mais fracos. Com um jeito honesto de resolver os conflitos internos. Em resumem, seus próprios poderes legislativos, executivo e judicial. 

Um acampamento não pode ser um “morro carioca”. As vezes o poder dos acampamentos é concentrado de forma abusiva numa única liderança dominadora e ditatorial. Um acampamento não pode reproduzir um poder opressivo e violento no seu interior, se pretende conseguir maior justiça para todos. Não pode ser um pequeno estado opressor para os seus integrantes. Nem pode se converter num “morro carioca”, onde as lideranças imponham de qualquer jeito sua própria vontade e onde nem polícia nem autoridades civis possam ter acesso. 

Os fins não justificam os meios. “Comumente escuta-se que o fim justifica os meios numa alusão de que "certos" fins podem, ou devem, ser alcançados através de métodos não convencionais, ou anti-éticos, ou violentos. Este conceito é utilizado com frequência numa tentativa de minimizar os meios violentos utilizados na guerra, na justificativa de leis severas e repressões impostas a grupos sociais ou religiosos ou étnicos” . Violências resultam em mais violência e mais injustiças. Somente aquilo que é construído e realizado com honestidade, solidariedade, justiça e liberdade dá estes mesmos frutos.

A não violência arma do povo. Os métodos ativos e combativos de luta não violenta são a melhor arma do povo. Não precisa um arsenal de armas para lutar e combater pela justiça. Todos podemos não colaborar com as decisões injustas, todos temos acesso a não cooperação, a desobediência civil e a mobilizações pacíficas pelos próprios direitos e legítimos interesses. Renunciando a revidar à violência, mostrando quem realmente é culpado da violência, da injustiça e da mentira.

Violência é crime, sim. Precisamos enfrentar a luta com a renúncia expressa ao recurso da violência e das armas como método de conquista da terra. O qual requer, sim, ainda mais coragem no enfrentamento da pistolagem, as ameaças, aos assassinatos, ao uso da repressão e ao uso do Estado contra os legítimos direitos do campesinato. 

Necessidade do debate interno sobre a não violência. Por isso na Comissão Pastoral da Terra, que pretende inspirar-se nos princípios do evangelho, devemos aprofundar o debate interno sobre a violência agrária, e também dentro dos movimentos sociais. É necessária uma reflexão e capacitação sobre o uso de métodos de luta não violentos, ou se quiser, de ação combativa não violenta. 

A não violência está na prática do verdadeiro cristianismo. Os métodos de resistência e de luta não-violentas correspondem a uma forma de viver na prática as orientações evangélicas, que está na missão e identidade pastoral da CPT, “convocada pela memória subversiva do evangelho da vida e da esperança, fiel ao Deus dos pobres, à terra de Deus e aos pobres da terra, ouvindo o clamor que vem dos campos e florestas, seguindo a prática de Jesus” (Missão da CPT). 

Foi Jesus que nos disse: «Vós tendes ouvido o que se disse: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos que não resistais ao mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra» (Evangelho de Mateus 5, 38) e «Tendes ouvido o que foi dito: Amarás ao teu próximo e aborrecerás ao teu inimigo. Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem ao que vos odeia, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para serdes filhos de vosso Pai, que está nos Céus, o qual faz nascer o seu Sol sobre bons e maus, e vir chuva sobre justos e injustos» (Mateus 20, 43-45).

O Papa Francisco declarou faz pouco: Fé e violência são incompatíveis. O papa Francisco dedicou o domingo 18 de agosto de 2013 a oração do Ângelus ao tema da violência, afirmando que "fé e violência são incompatíveis" e que "a verdadeira força do cristão é a força da verdade e do amor, que comporta renunciar a qualquer tipo de violência". O Papa declarou que "o Evangelho não autoriza em absoluto o uso da força para defender a fé". Que "seguir Jesus comporta renunciar ao mal, ao egoísmo, escolher o bem, a verdade, a justiça, embora requeira sacrifício e renunciar aos próprios interesses". "E isso sim divide, nós sabemos, divide os vínculos mais estreitos", acrescentou. "A fé não é algo decorativo, é força de alma", e que "a fé comporta escolher Deus como critério base da vida”. “Depois que Deus veio ao mundo, não podemos mais agir como se Deus não o conhecêssemos".

A desumanização da violência. “A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra que os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de cria-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força da libertação dos oprimidos nem de si mesmos.”(Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido). [ii]


Josep Iborra Plans, 

Agente da Comissão Pastoral da Terra de Rondônia e da equipe de Articulação da Amazônia. 

Porto Velho, 15 de agosto de 2013 




[i] http://www.espirito.org.br/portal/artigos/mundo-espirita/gandhi-e-a-nao-violencia.html 


[ii] Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, http://www.pedagogiaaopedaletra.com.br/posts/pedagogia-do-oprimido/

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