A morosidade nega a esperança e encoraja o conflito

 

“Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Rui Barbosa

*Padre Ton

O chamado Massacre de Corumbiara é emblemático para os que vivem a luta pela posse da terra e para os que, nas estruturas de poder, sabem que qualquer nova condução mal sucedida de retomada de áreas em disputa em Rondônia pode ter trágicas consequências. Há tensão e inaceitável demora na solução judicial de conflitos agrários em diversas regiões.

Desde aquele episódio, há 17 anos, os governadores têm tido cuidado redobrado na execução de decisões judiciais, mediante o cumprimento pela Polícia Militar de mandados de reintegração de posse. O mesmo acontece no âmbito de outras instâncias de poder e instituições, como nos legislativos locais e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que dispensa apresentações, mas cabe sublinhar sua enorme responsabilidade no processo.

Foi com o propósito de evitar violência e morte que o vereador Roberto Ferreira, de Chupinguaia, pediu a interferência da Ouvidoria Agrária Nacional na Justiça de Vilhena para que um prazo fosse dado às famílias que ocupam a Fazenda Dois Pinguins desde o ano de 2004, para a retirada de animais, pertences e colheita da lavoura, antes de deixar o local de maneira pacífica e assim evitar que reações indesejadas no despejo eliminassem vidas. Tanto de um lado como de outro.

A Justiça concedeu o prazo, e a reintegração ocorreu em outubro do ano passado. Organizadas na Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Igarapé Água Viva, as 52 famílias cultivavam mandioca, feijão e milho e tinham aproximadamente 700 cabeças de gado.

Mas elas resistiam em deixar o que foi construído ao longo do tempo. Primeiro, fora da porteira, acampadas na estrada, depois em pleno domingo de Carnaval, 19 de fevereiro deste ano, quando entraram novamente na área. Não foi uma decisão intempestiva, de dirigentes da associação. Teve debate, discussão, como aliás é feito em qualquer movimento de ocupação.

Uma decisão difícil, alimentada pela demora da Justiça em resolver conflitos agrários, pela revolta com a atuação de certos fazendeiros que, pactuados muitas vezes com autoridades locais, agem coagindo assentados, legitimando roubo de madeira e desmatamento ilegal. Na região Sul de Rondônia há farta literatura sobre casos assim.

Os que detêm o domínio de áreas na forma de Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs) julgam-se, mesmo improdutivas, legítimos e eternos proprietários do que na verdade são terras públicas, tuteladas pelo Incra.

A Fazenda Dois Pinguins, de 2 mil hectares, localizada no lote 40, Gleba Corumbiara, em Chupinguaia, tem essa característica. Seus “proprietários” não compraram a terra de pessoa física, numa transação típica entre privados. Ela foi objeto de concorrência pública, e a parte vencedora firmou o CATP com o Incra em 22/4/1975. Para que pudesse continuar na área, deveria cumprir cláusulas resolutivas, uma delas implantar um anteprojeto de exploração econômica, no prazo de seis anos.

Vistoria do Incra feita em 1980 constatou “insignificante atividade agropecuária”, e uma nova vistoria em 2004 registra que “tanto o licitante originário como os atuais proprietários não implantaram as benfeitorias acordadas no anteprojeto apresentado na época da concorrência pública”.

Por isso, em fevereiro de 2006 procuradores federais e um procurador regional do Incra entraram com a Ação de Resolução de Contrato de Alienação de Terras Públicas e Cancelamento de Registro Imobiliário, com pedido de imissão de posse e antecipação de tutela.

A reversão do lote ao patrimônio público, para inclusão no Plano Nacional de Reforma Agrária, é o propósito da ação. Os procuradores observaram que os “proprietários” não deram função social à terra, prevista na Constituição. Mesmo com “tensão social” na área, a juíza da 2ª Vara da Justiça Federal disse que a celebração do CATP em abril de 1975 é uma “circunstância que por si só afasta a urgência da medida perseguida”. Detalhe: é uma ação que não admite prescrição pelo direito brasileiro.

Apreciado o mérito e julgado improcedente o pedido da União, em 2011, o procurador Vinicius Leão Lima recorreu na mesma época e registra “a eclosão” de eventual conflito. Ao mesmo tempo, na Justiça do Estado tramitava, desde 2004, ação de reintegração de posse concluída somente em 2011, quando o Incra e as famílias sofreram derrotada na esfera federal.

Na região de Vilhena e Chupinguaia existem ao menos 35 áreas de domínio público transferidas a pessoas que se submeteram à concorrências e firmaram o CATP. Não tenho avaliação sobre a produtividade delas, mas o certo é que essa modalidade de usufruto pode ser destinada à reforma agrária, de acordo com avaliação do Incra. Uma ação (2007.41.01.004656-9) subscrita pela procuradora Leda Maria de Lima, por exemplo, concluída em 2009, na mesma Gleba Corumbiara, resultou favorável à União e hoje várias famílias estão sendo assentadas.

A leitura do processo em que criminalizou apenas os trabalhadores que ousaram voltar para a Dois Pinguins e a diligência feita por mim em Vilhena me autorizam a dizer que a luz amarela das tensões ditadas nas ações do Incra e o aspecto fundiário do direito à terra não foram levados em conta pela Justiça, que tratou o caso exclusivamente do ponto de vista cível e criminal.

Relembro que a Justiça determinou o despejo numa área de domínio público, e negou todos os pedidos de revogação da prisão do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Vilhena e Chupinguaia, Udo Whalbrink, sobre o qual não existem provas de participação na retomada da área, e a quem se deve resposta aos boletins de ocorrência de ameaças de morte feitas a ele.

Como se pode constatar, as instâncias de Justiça deixam por sua morosidade os acontecimentos se agravarem no tempo, revogando no campo a esperança nas instituições, e encorajando os que divisam na resistência tão somente ataques à propriedade a utilizar todos os instrumentos a seu alcance para intimidar e desclassificar os movimentos sociais.

*É deputado federal pelo PT-Rondônia, segundo vice presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados

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