Governo da família, pela família e para a família
Essa é a fórmula democrática do
“novo governo” que se instalou no Planalto desde janeiro de 2019. Novo governo
que, após quase um ano e meio, acaba por abdicar de seus princípios pétreos, aparentemente
tão rígidos e absolutos, para entrar no jogo da “velha política”. Tão velha
que, no vórtice do furacão de uma pandemia avassaladora, volta-se para o
centrão do Congresso Nacional, e com ele não hesita em abrir o processo
tradicional do “toma-lá-dá-cá” ou “balcão de negócios”, tão característicos da
prática política brasileira.
Fica provado que nos embates do
dia-a-dia, sobretudo quando abalados pelas tormentas e turbulências de um
mandato político, desmascara-se a aureola de um messianismo hipócrita e oportunista.
Termina por ajustar-se aos interesses que estão em jogo, por mais nefastos e mesquinhos,
obscuros e obtusos que eles sejam. Primeiro, veio a saída tumultuada de dois
ministros bem avaliados popularmente – Mandetta, da saúde, e Moro, da justiça e
segurança nacional. Não permanece no “meu governo” quem ousa crescer mais do
que o capitão, mesmo que seja em prol do país. Seguiu-se a virada abrupta,
tanto no discurso quanto na relação com os outros poderes, no sentido de
pavimentar a todo custo a via da governabilidade.
A bandeira contra a corrupção, contra
a esquerda comunista e contra o pensamento livre, crítico e científico,
desfraldada com tanto entusiasmo a partir da campanha eleitoral, agora pode ser
enrolada e engavetada. Mais importante neste momento é blindar o clã familiar,
para defender-se de CPIs, inquéritos e investigações em curso, seja por parte
do legislativo e do judiciário, quanto por parte da Polícia Federal. É preciso
neutralizar o assédio da imprensa que, 24 horas por dia e 7 dias por semana, mete
por todo lado e a todo momento o nariz e a voz, juntamente com microfones,
câmaras e holofotes. Se necessário, acelera-se o ritmo da usina de fake news, sob
controle do “gabinete do ódio” e com ampla difusão pelas redes sociais.
Quanto à famigerada “gripezinha”,
o novo Ministro da Saúde, avesso a tantas entrevistas e coletivas de imprensa,
acabou relegando o “problema” a um segundo plano. Até mesmo o emprego e a
retomada da economia, antes defendidos com unhas e dentes e em prejuízo da saúde
pública, passam também a uma esfera secundária. Em vez disso, ganha relevância
e prioridade absolutas a proteção incondicional da família. Urge barrar com
toda força as vozes e os ventos que sopram com redobrada fúria, atentando
contra o telhado de vidro do chefe. Daí a busca de pessoas de inteira confiança
para os postos nevrálgicos dos processos judiciais, tão tortuosos e
labirínticos – gente com quem “eu possa interagir”. A nave chamada Brasil navega
sobre mares agitadas, seja do ponto de vista sanitário, quanto do ponto de
vista socioeconômico. O novo coronavírus ceifa vida atrás de vida, devastando
lares, cidades e países inteiros. Um surdo clamor se ergue aos céus, mas nuvens
pesadas e sombrias escondem o sol. Apesar de tudo isso, é melhor não incomodar
o capitão. Ele se encontra ocupadíssimo com a defesa dos filhos que,
infelizmente, empurram com a barriga as dívidas com a justiça.
Emerge naturalmente o conceito de
“patrimonialismo”, herdado da Península Ibérica, mas que encontrou terreno
fértil nas terras de Santa Cruz. Os clássicos da sociologia e historiografia
brasileira – Caio Prado Junior, Roberto da Mata, Celso Furtado, Raymundo Faoro,
Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros – se encarregaram de
explicar seu significado: apropriação indevida da res publica (coisa pública) em vista de interesses privados,
familiares, partidários ou corporativos. Trata-se de administrar a nação como
se fosse a própria casa ou fazenda, misturando patrimônio público e privado. Os
órgãos e servidores públicos passam a obedecer servilmente ao governante de
plantão, como se fossem seus auxiliares domésticos. Tal prática se torna tão
comum e corriqueira que acaba sendo naturalizada não somente pelos “donos do
poder”, mas também pela própria população. Tudo a ver com o que está
acontecendo sob nossos olhos, não raro míopes e cegos diante dos mandos e
desmandos do governo.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 28 de abril de 2020
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