Vidas indígenas importam
Nesta quarta-feira, 10, a frente do Palácio do Governo de Roraima
amanheceu coberta com cruzes num protesto da sociedade civil cobrando do
governo um plano de enfrentamento ao avanço imensurável da pandemia do
coronavírus no Estado. Uma cruz em destaque chamou logo a atenção. Pintada de
branco, com letras pretas a frase “vidas indígenas importa” chama a atenção de
quem passa pela praça. Uma alusão à campanha internacional “vidas negras
importam”, contra o racismo e o extermínio da população negra.
A imagem desta cruz e a frase
impactante me fez pensar nos meus quase 30 anos de vida na Amazônia. Neste tempo todo,
aprendi muitas lições e reaprendi muitos conceitos nas andanças com os povos
indígenas. Atuando por muito anos na formação de professores/as indígenas, me
lembro de uma aula da disciplina de Sociologia da Educação numa turma de
Licenciatura em Sociologia na cidade de São Gabriel da Cachoeira, a cidade mais
indígena do Brasil. Era julho de 2013 num curso de formação em módulos
concentrados nas férias destes professores/as. Eram 60 estudantes das etinias
Arapaso, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapanã, Kubeo, Kuripako,
Makuna, Miriti-tapuya, Nadob, Piratapuya, Siriano, Tariano, Tukano, Tuyuka,
Wanana, Werekena e Yanomami. Uma riqueza sociocultural incrível e uma troca de
saberes de valor imensurável.
As aulas eram bem descontraídas e
sempre começavam com um ensinamento dos ancestrais para relacionar com o
conteúdo teórico que era traduzido para o contexto indígena. Apresentavam o
ensinamento nas línguas Nheengatu, Tukano, Baniwa ou Yanomami e depois
explicavam em português. Numa das aulas da disciplina Sociologia da Educação, provoquei um
debate sobre os processos de aprendizagem e perguntei como eles ensinavam as
crianças a falar. Todos me olharam assustados. Percebi que havia falado alguma
besteira.
Então, muito gentilmente a professora Mara do povo Kubeo que vivia na
fronteira com a Colômbia, explicou o seguinte: “nosso povo não ensina criança
falar. A gente ensina criança escutar. Se ela aprende escutar, ela aprende
brincar, refletir e entender os seres que habitam os céus, as águas, a floresta
e o centro da terra. Ela escuta o vento, o silêncio, o canto dos pássaros, dos
sapos, das cigarras, dos grilos e aprende a diferenciar cada coisa que escuta.
Primeiro ela escuta o vento, depois ela sente o vento e por último ela fala o
que é o vento. Por isso, quando as nossas crianças falam, elas já sabem o que
significa a palavra que está pronunciando. Diferente das crianças de vocês que
aprendem falar antes de aprender escutar e sentir. Aprendem repetindo como
papagaio. Isso deve ser muito triste e muito sofrido para elas. Deve ser por
isso que vocês falam tanto e escutam tão pouco”.
Este ensinamento da professora Mara
Kubeo me acompanha até hoje. E muitos outros saberes que aprendi com estes
professores indígenas nessas trocas de saberes que fizemos no Alto Rio Negro e
em outras regiões da Amazônia.
Esta semana, soube com pesar que Mara
Kubeo sucumbiu ao covid-19. Ela e muitos outros professores/as daquela turma e
dos demais cursos de formação superior de São Gabriel da Cachoeira. O município,
com 96% da população indígena, é um dos mais afetados pelo vírus na Pan-Amazônia e está no ranking
proporcional de diagnósticos de covid-19. Em 21 dias (de 18 de maio a 8 de
junho) teve uma alta de 366 casos da doença para 2.299. Isso representa uma
média de 511 casos para cada 10 mil habitantes. Das testagens realizadas no
município, 67% tem resultado positivo. A maior taxa da Pan-Amazônia.
Estas cifras estatísticas se repetem
em várias regiões da Pan-Amazônia. Entretanto, não
são apenas números, cifras, quantidades de pessoas contaminadas e mortas. São
pessoas, seres humanos com histórias de vida, ensinamentos interrompidos.
Quantos saberes acumulados nestes professores/as enterrados prematuramente em
toda Pan-Amazônia!
De acordo com a Rede Eclesial
Pan-Amazônica – REPAM, em parceria com a Coordenadoria das Organizações
Indígenas da Bacia Amazônica – COICA, em seu Boletim sobre o avanço da covid-19
sobre os povos indígenas, no início de junho, uma média de 5.628
indígenas estão contaminados e 548 faleceram da doença nos últimos meses. Entretanto, essas
informações podem estar muito aquém da realidade porque muitas pessoas não
conseguem fazer o teste e suas mortes nem sequer são informadas.
De acordo com o mesmo Boletim da Repam, não só corremos o risco de
termos genocídio bem como etnocídio porque muitos povos têm um número reduzido
de indivíduos e pode perder todos para a doença. “É urgente que não só o Estado
Brasileiro (como também toda a sociedade) se mobilize para evitar a tendência
que vivemos. A perda de povos indígenas é principalmente uma perda para a
sociedade nacional, pois eles são os maiores responsáveis pelo equilíbrio
climático e pela proteção das poucas florestas que ainda nos restam”.
*Marcia
Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e
Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania
(Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia
(UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo
Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR);
Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do
Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede
Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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