“Ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”


A frase de João Paulo II remonta ao início dos anos de 1980, quando o então pontífice fez uma visita à Cidade do México. Mas traduz também um entrave histórico para o “desenvolvimento integral”, denunciado por uma série de escritos da Doutrina Social da Igreja, com destaque para os documentos finais das Assembleias do episcopado da América Latina e Caribe. O tema das assimetrias socioeconômicas, entre continentes, regiões, países e no interior mesmo de cada país, aparece transversalmente em todo o ensino social da Igreja. Encontra-se presente, de forma particular, nas análises do fenômeno migratório. Este último funciona como uma espécie de pêndulo que, em vão, tentaria equilibrar os pratos da balança.
Pesquisas vêm mostrando que o cenário provocado pela pandemia do Covid-19 tem agravado ainda mais os desequilíbrios sociais entre povos e nações. De acordo com um Relatório do Fórum Econômico Mundial, publicado no último dia 26 de maio, “em pleno vigor do flagelo que atinge toda a humanidade, durante os meses de abril e maio, os superbilionários viram sua fortuna crescer em 19%, o que equivale a um aumento de 400 bilhões de dólares”. O relatório cita, entre outros, os expoentes da tecnologia da informática, tais como Amazon, Microsoft, Youtube, Facebook. Convém não esquecer que no Brasil, um dos países mais desiguais do planeta, 1% dos mais ricos retêm maior renda que a metade da população.
Desgraçadamente, o aumento exponencial da renda e da riqueza dos maiores conglomerados transnacionais, mesmo em tempos de crise (ou devido justamente à crise), não representa novidade alguma. O economista francês Thomas Piketty, o autor do best-seller O apital do século XXI, analisa nessa obra a crescente desigualdade social que se verifica nas últimas décadas do século XX e início do atual. Recentemente, o mesmo economista lança o livro Capital e ideologia. Em entrevista sobre “a superação do hipercapitalismo”, publicada pelo site da rede Globo, no dia 12 de setembro de 2019, comentando a nova obra, afirma literalmente o autor francês: “Se nos negarmos a falar sobre a superação do capitalismo por uma economia mais justa e descentralizada, corremos o risco de continuar fortalecendo as narrativas do avanço identitário, do avanço xenófobo. Estas são histórias niilistas extremamente perigosas para nossas sociedades que se alimentam da recusa em discutir soluções justas, internacionalistas, soluções igualitárias de reorganização do sistema econômico”!
A sua fala deixa claro que a teoria niilista do negacionismo e a “narrativa do avanço xenófobo”, que costumam caminhar de mãos dadas, se agravam no solo ambíguo da pandemia. Com efeito, a crise é palco privilegiado para oportunismos imprevistos. As raras e poucas migalhas que deixam de chegar às mãos e à mesa dos pobres, escorregam sub-repticiamente (ou à plena luz do dia) para as contas bancárias dos super ricos. E esse desequilíbrio constante da balança é fator local, regional e global de grandes deslocamentos humanos. Os “fugitivos” da violência, da pobreza ou dos desastres climáticos correm desesperados atrás das migalhas perdidas. Por sua vez, o aumento das migrações provoca fortes reações preconceituosas, discriminatórias e xenófobas, tanto por parte de grupos racistas e neofacistas fechados, quanto por parte das políticas de extrema direita que avançam pelo planeta.
Resulta evidente que um sistema político e econômico de produção-mercado-consumo, levado à quinta potência, cujo motor é o lucro a qualquer preço e que se nutre através da acumulação do capital, não pode continuar funcionando indefinidamente. A exploração exacerbada dos recursos naturais e da força de trabalho humano tropeça com limites insuperáveis. A mãe-terra, “nossa casa comum” não suporta o ritmo endiabrado da acumulação capitalista. Daí a necessidade de mudanças estruturais nesse sistema que Piketty chama de “hipercapitalismo”. Ele se revela cada vez mais insustentável, tanto do ponto de vista socioeconômico e político-cultural, quanto do ponto de vista ecológico. Além disso, continua levando imensas populações órfãs e errantes à estrada, ao êxodo, ao exílio e à diáspora.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 27 de maio de 2020

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