Boaventura: procuram-se horizontes, urgente
A
barbárie pós-moderna alastra-se. Como alternativa, proporemos apenas a
diversidade? Talvez as epistemologias do Sul — outras maneiras de pensar,
sentir e conhecer — nos sugiram uma saída
Por Boaventura
de Sousa Santos | Imagem: Henri Cartier-Bresson
As oito
pessoas mais ricas do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da
população mundial (3,5 bilhões de pessoas). Destroem-se países (do Iraque ao
Afeganistão, da Líbia à Síria, e as próximas vítimas tanto podem ser o Irã como
a Coreia do Norte) em nome dos valores que deviam preservá-los e fazê-los
prosperar, sejam eles os direitos humanos, a democracia ou o primado do direito
internacional. Nunca se falou tanto da possibilidade de uma guerra nuclear. Os
contribuintes norte-americanos pagaram milhões de dólares pela bomba não
nuclear mais potente desde sempre, lançada contra túneis no Afeganistão
construídos nos anos de 1980 com o próprio dinheiro deles, gerido pela CIA,
para promover os radicais islâmicos em sua luta contra os ocupantes soviéticos
do país, os mesmos radicais que agora são combatidos como terroristas. Enquanto
isso, os norte-americanos perdem o acesso a cuidados de saúde e são levados a
pensar que os seus males são causados por imigrantes latinos mais pobres que
eles. Tal como os europeus são levados a pensar que o seu bem-estar está
ameaçado por refugiados e não pelos interesses imperialistas que estão a forçar
ao exílio tanta gente. Tal como os sul-africanos negros, empobrecidos por um
mal negociado fim do apartheid, assumem atitudes xenófobas e racistas contra
imigrantes negros do Zimbábue, Nigéria ou Moçambique, tão pobres quanto eles,
por considerá-los causadores dos seus males. Entretanto, correm mundo as
imagens ternurentas de Silvio Berlusconi a dar mamadeira a cordeirinhos para
defendê-los do sacrifício da Páscoa, sem que a ninguém ocorra que naqueles
minutos televisivos milhares de crianças morreram por falta de leite. Tal como
não são notícia as fossas clandestinas de corpos esquartejados que não cessam
de ser descobertas no México enquanto as fronteiras entre o Estado e o
narcotráfico se desvanecem. Tal como temos medo de pensar que a democracia
brasileira morrerá no dia em que um Congresso de políticos desvairados, na
maioria corruptos, conseguir destruir os direitos dos trabalhadores
conquistados ao longo de cinquenta anos, um propósito que, por agora, parecem
lograr com inaudita facilidade. Há de haver um momento em que as sociedades (e
não apenas alguns “iluminados”) concluam que isto não pode continuar assim.
Para
isso, a negatividade do presente nunca será suficiente. A negatividade só
existe na medida em que for visível ou imaginável aquilo que nega. Um beco sem
saída converte-se facilmente numa saída se a parede em que termina tiver a
transparência falsa do infinito ou do inelutável. Essa transparência, por ser
falsa, é tão compacta quanto a opacidade da selva escura com que antes a
natureza e os deuses vedavam os caminhos da humanidade. Donde vem essa
opacidade se a natureza é hoje um livro aberto e os deuses, um livro de
aeroporto? Donde vem a transparência se a natureza quanto mais se revela mais
se expõe à destruição, se os deuses tanto servem para banalizar a crença
inconsequente como para banalizar o horror do ódio e da guerra?
Há algo
de terminal na condição do nosso tempo que se revela como uma terminalidade sem
fim. É como se a anormalidade tivesse uma energia inusitada para se transformar
em nova normalidade e nos sentíssemos terminalmente sãos em vez de
terminalmente doentes. Esta condição deriva do paroxismo a que chegou o
instrumentalismo radical da modernidade ocidental, tanto em termos sociais como
culturais e políticos. A instrumentalidade moderna consiste no predomínio total
dos fins sobre os meios e na ocultação dos interesses que subjazem à seleção dos
fins sob a forma de imperativos falsamente universais ou de inevitabilidades
falsamente naturais. No plano ético, esta instrumentalidade permite a quem tem
poder econômico, político ou cultural apresentar-se socialmente como defensor
de causas quando, de fato, é defensor de coisas.
Esta
instrumentalidade assumiu duas formas distintas, ainda que gêmeas, de
extremismo: o extremismo racionalista e o extremismo dogmatista. São duas
formas de pensar que não permitem contra-argumentação, duas formas de agir que
não admitem resistência. São ambas extremamente seletivas e compartimentadas,
de tal modo que as contradições nem sequer aparecem como ambiguidades. As
caricaturas revelam bem o que está para além delas. Heinrich Himmler, um dos
máximos chefes nazistas , que transformou a tortura e o extermínio de judeus,
ciganos e homossexuais numa ciência, quando regressava à noite a casa entrava
pela porta traseira para não despertar o seu canário favorito. É possível
culpar o canário pelo fato de o carinho que Himmler tinha por ele não ser
partilhado pelos judeus? Por sua vez, é conhecida a anedota daquele comunista
argentino tão ortodoxo que mesmo nos dias de sol em Buenos Aires usava chapéu
de chuva só porque estava a chover em Moscou. É possível negar que por detrás de
tão acéfalo comportamento não estaria um sentimento nobre de lealdade e de
solidariedade?
As
perversidades do extremismo racionalista e dogmatista vêm sendo combatidas por
modos de pensar e agir que se apresentam como alternativas mas que, no fundo,
são becos sem saída porque os caminhos que apontam são ilusórios, quer por
excesso de pessimismo, quer por excesso de otimismo. A versão pessimista é o
projeto reacionário que tem hoje uma vitalidade renovada. Trata-se de detestar
em bloco o presente como expressão de uma traição ou degradação de um tempo
passado, dourado, um tempo em que a humanidade era menos ampla e mais
consistente. O projeto reacionário partilha com o extremismo racionalista e
dogmatista a ideia de que a modernidade ocidental criou demasiados seres
humanos e que é necessário distinguir entre humanos e sub-humanos, mas não
pensa que tal deva decorrer de engenharias de intervenção técnica, sejam elas
de morte ou de melhoria de raça. Basta que os inferiores sejam tratados como
inferiores, sejam eles mulheres, negros, indígenas, muçulmanos. O projeto
reacionário nunca põe em causa quem tem o privilégio e o dever de decidir quem
é superior e quem é inferior. Os humanos têm direito a ter direitos; os
sub-humanos devem ser objeto de filantropia que os impeça de serem perigosos e
os defenda de si mesmos. Se tiverem alguns direitos, têm sempre de ter mais
deveres que direitos.
A versão
otimista da luta contra o extremismo racionalista e dogmatista consiste em
pensar que as lutas do passado lograram vencer de modo irreversível os excessos
e perversidades do extremismo e que somos hoje demasiado humanos para admitir a
existência de sub-humanos. Trata-se de um pensamento anacrônico inverso que
consiste em imaginar o presente como tendo superado definitivamente o passado.
Enquanto o pensamento reacionário pretende fazer o presente regressar ao
passado, o pensamento anacrônico inverso opera como se o passado não fosse
ainda presente. Devido ao pensamento anacrônico inverso, vivemos em tempo
colonial com imaginários pós-coloniais; vivemos em tempo de ditadura informal
com imaginários de democracia formal; vivemos em tempo de corpos racializados,
sexualizados, assassinados, esquartejados com imaginários de direitos humanos;
vivemos em tempo de muros, fronteiras como trincheiras, exílios forçados,
deslocamentos internos com imaginários de globalização; vivemos em tempo de
silenciamentos e de sociologias das ausências com imaginários de orgia
comunicacional digital; vivemos em tempo de grandes maiorias só terem liberdade
para serem miseráveis com imaginários de autonomia e empreendedorismo; vivemos
em tempo de vítimas a virarem-se contra vítimas e de oprimidos a elegerem os
seus opressores com imaginários de libertação e de justiça social.
O
totalitarismo do nosso tempo apresenta-se como o fim do totalitarismo e é, por
isso, mais insidioso que os totalitarismos anteriores. Somos demasiados e
demasiado humanos para cabermos num caminho só; mas, por outro lado, se os
caminhos forem muitos e em todas as direções facilmente se transformam num
labirinto ou num novelo, em todo o caso, num campo dinâmico de paralisia. É
esta a condição do nosso tempo. Para sair dela é preciso combinar a pluralidade
de caminhos com a coerência de um horizonte que ordene as circunstâncias e lhes
dê sentido. Para pensar tal combinação e, aliás, até para pensar que ela é
necessária, são necessárias outras maneiras de pensar, sentir e conhecer. Ou
seja, é necessária uma ruptura epistemológica a que venho chamando as
epistemologias do sul.
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