CF: tráfico de pessoas, chaga social!

Palavra de Dom Moacyr Grechi – Arcebispo Emérito de Porto Velho
Matéria 404 - Edição de Domingo – 26/01/2014


O Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo; Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação de modo que ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos, mas à Igreja inteira.

O papa Francisco, através da Exortação “Evangelii Gaudium”, reafirma que “sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem fidelidade da Igreja à própria vocação, toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo”. Faz um apelo para que “com obras e gestos”, sejamos “comunidade missionária” que encurta as distâncias e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo, avançando no caminho da conversão pastoral e opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação (EG 24-27).

A liturgia apresenta o inicio da missão de Jesus e o seu primeiro anuncio: “Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo” (Mt 4,12-23). A adesão dos primeiros discípulos ao chamado do Mestre e o seguimento na missão de anunciar o Reino de Deus têm como exigência a conversão, mudança de vida. Jesus é o Mestre e anunciador do Reino; a vocação é sinal da chegada do Reino, cuja luz, profetizada por Isaias, brilha e se expande quebrando as correntes da injustiça (Is 8,23b-9,3).

Paulo Apóstolo recorda-nos que somos filhos de Deus, por meio do Batismo, e somos discípulos de Jesus que carregam a cruz e O seguem (1Cor 1,10-13.17). Além de nossas comunidades, expressa o papa Francisco, há ainda outros discípulos de Jesus que são chamados, como nós, a serem santos. Devemos reconhecer a graça com que Deus nos abençoa e encontrar em nossos irmãos algo que podemos receber como um dom; devemos redescobrir os fundamentos de nossa fé e fortalecer os compromissos assumidos no batismo.

A conversão de Paulo, celebrada ontem, impele-nos a viver a nossa missão evangelizadora. Evangelizar é transformar, modificar, fazer novas as coisas antigas (2Cor 5,17; Ap 21,5). Se não há transformação não há Boa Nova (Mazzarolo), pois Cristo nos resgatou da escravidão para a liberdade, então somos livres para construir uma nova civilização, um novo cosmos e uma nova vida (Gl 5,1).

As Cartas de S. Paulo formam as almas e os corações para a missão. Com esta convicção, Tiago Alberione, fundador dos padres e irmãs paulinas dizia que elas “formam os apóstolos conforme o coração de Jesus”, evangelizadores “firmes, santos e fecundos”.

Iniciamos o ano falando da necessidade de construir a Paz e estamos encerrando o mês de janeiro refletindo sobre o aspecto da unidade. “A unidade na Igreja é luz que irradia para o mundo a fraternidade universal instaurada por Cristo”(VP).

Nos países do hemisfério Norte, a conclusão da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (18-25/01) acontece hoje. O tema “Estará Cristo dividido?” (1Cor 1,1-17) é um convite às comunidades cristãs para se encontrarem a fim de compreender o que cada uma das comunidades pode receber das outras. No entanto, para que isso aconteça, o papa Francisco afirma que é necessária a humildade, reflexão e contínua conversão. O Batismo e a Cruz são elementos centrais do discipulado cristão que temos em comum.

É neste contexto de conversão eclesial que estamos nos preparando para a Campanha da Fraternidade que se posiciona contra o tráfico de pessoas. Com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e o lema: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gal 5,1) e a partir da reafirmação da defesa e da reverência pela dignidade dos filhos e filhas de Deus, a Igreja pretende mobilizar a sociedade através da denúncia do tráfico humano de modo a contribuir pela erradicação desse mal. Tráfico que envolve o trabalho escravo, exploração sexual, adoção ilegal, retirada de órgãos, tecidos e ossos, ou seja, o comércio de órgãos humanos.

É degradante pensarmos na pessoa como mercadoria. É inverter totalmente a essência do que é ser humano. É esvaziar o ser humano da sua dignidade de pessoa, que tem o direito de ser livre. Com a globalização, intensificaram-se os processos de migração e de tráfico humano, uma realidade que interpela todas as pessoas de boa vontade a se indignarem, a se informarem e a buscarem os meios de erradicar esse verdadeiro crime que destrói a vida e os sonhos de muita gente, especialmente de jovens.

Para Ir. Eurides A. de Oliveira (ICM), coordenadora da Rede Um Grito Pela Vida, uma rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, vinculada à Conferência dos Religiosos do Brasil e à CNBB, o tráfico de pessoas configura em nossos dias uma grande chaga social, que desumaniza e crucifica milhões de pessoas em todo o planeta. Constitui uma das formas mais explícitas da escravidão do século XXI. Reflete profundas contradições históricas das relações humanas e sociais da humanidade.

Vulnera e viola a dignidade e a liberdade de numerosas pessoas, particularmente mulheres e crianças, mercantilizando e ferindo seus corpos, matando seus sonhos e direito de viver. Configura hoje uma das piores afrontas à dignidade humana e um das mais cruéis violações dos direitos humanos. Um afronta à imagem do Criador. Sua erradicação é sonho e missão de todos nós, que acreditamos na possibilidade de um “outro mundo possível”, em uma sociedade pautada no direito, na justiça social e na superação de toda forma de violência, exclusão e tráfico. Na manifestação do Reino de Deus como um espaço de vida para todos.

A realização deste sonho, deste projeto, supõe a superação da indiferença e da alienação da população em geral em relação a esta realidade-clamor. Um firme compromisso de todos: igrejas, sociedade civil e Estado. Urge uma ação determinada e firme de todos. Das autoridades competentes, para coibir, punir os que traficam. Do estado e da sociedade no sentido de denunciar, informar, e educar, assistir e proteger as vítimas, e acima de tudo de lutar pela superação das causas geradoras e sustentadoras desta iníqua realidade.

Só será possível a concretização do sonho de uma sociedade sem tráfico de pessoas, se houver uma ampla comoção e mobilização social e política, articulada em redes de proteção e defesa de direitos das populações empobrecidas, vítimas em potencial deste hediondo crime. Através da gestação de um novo modelo de desenvolvimento, que centre sua atenção nas pessoas e nas suas necessidades básicas. Trata-se de uma tarefa que se impõe a todos nós como imperativo humano e divino.

Concretamente, o empenho em construir uma sociedade sem tráfico de pessoas consiste num processo permanente de intervenção em todos os níveis e dimensões. Através de ações locais de sensibilização e informação, pelas lutas por políticas públicas que garantam os direitos fundamentais das vítimas, principalmente a adolescência, juventudes e mulheres, pelo efetivo cumprimento e adequações na legislação e dos mecanismos de proteção e controle dos Estados-nação (IHU).

Desarticular as redes de tráfico humano é extremamente difícil e arriscado: o tráfico conta com a conivência de políticos e pessoas influentes, além de estar atrelado a outros tráficos (narcotráfico, tráfico de armas). E mais: as próprias vítimas resistem em denunciar e se desvincular da rede.

Segundo o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o problema mais importante é a falta de denúncia, resultado da vergonha ou do medo das vítimas. “Nós precisamos conscientizar a sociedade brasileira de que as informações têm que chegar ao Poder Público porque, sem essas informações, não temos como abrir inquérito, não temos como investigar, não temos como punir aqueles que praticam esse tipo de violência contra seres humanos”.

A Igreja está intimamente solidaria com as pessoas afetadas pelo tráfico humano. Sensível à evolução da consciência universal sobre o valor da dignidade humana e dos direitos fundamentais, quer contribuir no combate pela erradicação deste crime. Pessoa alguma pode ser considerada como objeto de compra e venda. É um ato de injustiça e de violência que clama aos céus. É uma negação radical do projeto de Deus para a humanidade (TB/CF 112-113, 155).

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